27/12/2006

Ricos e Pobres

BOLONHA OU A PRIVATIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO
Por João Medeiros

A miragem de Bolonha engana, sobretudo, na ausência de um discurso crítico sobre tal miragem. Pois as pessoas sabem que este país não lhes oferece condições, sobretudo se forem jovens. Custa às vezes as pessoas despertarem para a realidade, mas isso vai acontecer, mais cedo ou mais tarde, pois «Bolonha» é mesmo uma miragem.

A privatização da educação tem ocorrido em Portugal, como em todos os países da área do chamado «1º Mundo» e muito para além deste, como uma das facetas fundamentais do processo de globalização (capitalista).
Os estados-maiores que comandam a política mundial não se enganaram ao proclamar que o ensino deveria ser considerado como um serviço e sujeito às «leis do mercado». Estavam apenas a franquear as portas para oportunidades de negócios para os capitalistas, por um lado, sendo certo, por outro, que é uma questão estratégica saber-se quem ensina, a quem, como, em que condições.

O «desenvolvimento económico» é sempre tributário de uma determinada visão política da economia, que tenta passar em silêncio a sua opção de classe, através da imposição de um saber «conveniente», o «pensamento único», a ideologia do «consenso social».
Estas razões - só por si - seriam suficientes para nos distanciarmos dessa política, embora também elas tragam como consequência o acentuar das desigualdades, já existentes previamente, no acesso à educação. A educação de qualidade está reservada, mais do que há 20 ou 30 anos atrás, a uma fina camada das classes médias-altas e altas, num mundo em que postos de trabalho interessantes, bem remunerados e com
prestígio social, escasseiam. Para a grande massa, está reservada uma pseudo educação, na realidade, uma aculturação ao capitalismo de hoje; uma pseudo formação, na realidade, um processo de aceitação da precariedade.

O investimento público no ensino é calculado em função de critérios de «rentabilidade» económica, por mais aberrante isso seja, se pensarmos um pouco sobre o assunto. Assim, as consideradas escolas «modelo», são as que estão a rebentar pelas costuras, por serem as «escolhidas» pelos pais, que «preferem» que os seus filhos façam longos quilómetros diários para frequentar tais escolas de «elite». Se as escolas fossem todas mantidas ao mesmo nível de equipamento, de investimento, etc., esta distinção não teria lugar. Acontece que algumas escolas são deixadas ao abandono (as de menor «sucesso») como uma absurda punição às respectivas comunidades educativas, mas para as referidas «escolas modelo», há uma chuva de verbas, de contratos programa, de parcerias empresas/escolas, etc.

As escolas têm vindo a ser transformadas em palco das políticas autárquicas, com uma influência muito directa do município (e dos seus políticos) na gestão e mesmo nos assuntos pedagógicos dos estabelecimentos. De facto, a única componente do sistema (ainda) não municipalizada é a das escolas secundárias, mas isso também vai mudar, em breve.
Os docentes também são fortemente coagidos a preferirem essas tais escolas modelo, pois assim terão uma vida profissional tranquila, sem risco de «horário zero» por redução do número de turmas (situação que se pode transformar numa deslocação forçada para muito longe), sem problemas «disciplinares».

O provimento dos lugares dos docentes ainda é feito por concurso nacional, mas isso vai deixar de ser assim. Com efeito, haverá possibilidade da própria administração da escola escolher os seus docentes, por critérios dúbios, ao abrigo de um pseudo contrato de autonomia. Neste momento, assiste-se à introdução de critérios empresariais no interior da escola pública: o «sponsoring» está a invadir todos os domínios, desde campanhas publicitárias para produtos alimentares e bebidas no interior da escola, até a pseudo cursos de informática «oferecidos» generosamente, sob condição de a sua continuidade ser paga, nas tais escolas privadas de informática… As autarquias não têm vocação (ou vontade) para gerir escolas, tendo portanto tendência a fazer o «outsourcing» de todos os serviços de apoio, desde o fornecimento de refeições à limpeza dos locais. Vão portanto beneficiar empresas privadas que, muitas vezes, obtêm contratos contra favores políticos e pessoais, não pela qualidade superior dos seus serviços. Face a uma população capaz de fazer grandes sacrifícios para assistir ao jogo da sua equipa de futebol preferida, mas que não compra livros, não vai ao teatro e raramente vai ao cinema, a opção de muitos autarcas tem sido a de fomentar o desporto/futebol na sua autarquia, sendo avaros em relação a financiamentos destinados a melhorar a qualidade do ensino e todos os complementos educativos e culturais que poderiam gravitar em torno da escola. As próprias escolas são vistas como empresas, que devem ser geridas como empresas, onde o produto é o «sucesso dos alunos». A escola que fabrica maior «sucesso» (não importa por que meios, mesmo à custa da qualidade!) é a melhor.

Não admira que se note um recuo sensível da qualidade do ensino: retiraram-se as aulas experimentais em Ciências Naturais e Físico-Química, diminuíram-se as oportunidades de estruturação do pensamento, com a limitação do ensino da Filosofia somente a alguns anos do secundário (só os 10º e 11º anos). A sua ignorância cada vez mais chocante, em relação à «cultura geral» vai progredindo. A ciência é tida como prioridade, somente ao nível do discurso, pois não é favorecida na prática: nota-se uma ausência de nexo lógico entre matérias, entre os diversos ramos do saber científico, além do constante desprezo da sua essencial componente experimental. Este cozinhado vem apresentado com discursos «pedagógicos», cheios de citações evocando os novos ideais de pedagogia não directiva. Basta ler os preâmbulos dos textos legais, dos programas, dos livros didácticos e outros materiais, para nos apercebermos disso.

O recurso sistemático aos termos da pedagogia não directiva no discurso teórico é perversa e constantemente acompanhado pela negação de toda a hipótese de sua realização nas escolas do Estado. Estamos perante mais uma demonstração da
esquizofrenia do poder: o discurso é tanto mais liberal, quanto mais autoritária é a prática que pretende encobrir. Professores, alunos, encarregados de educação, têm de estar de sobreaviso face às políticas que se tenta encobrir com mentiras e propaganda, sendo essencial terem conhecimento do que se está a passar. Uma vez cientes dos embustes, eles próprios saberão detectar sinais desta privatização encapotada da escola pública, tornando assim possível o surgir de propostas de luta.

A verdade sobre Bolonha

Desde há alguns anos, o «processo de Bolonha» tem sido apresentado por governantes e seus apoiantes como um marco decisivo para o «progresso» do ensino superior
europeu. Mas não dizem que o processo foi inteiramente concebido dentro e para a satisfação plena dos parâmetros da «competitividade capitalista». O raciocínio dos que lançaram tal processo, de reforma do ensino superior nos países da UE, é simplesmente
este: «os europeus devem copiar os anglo-saxónicos, se quiserem ser a primeira potência mundial no saber, na investigação científica, logo, em tudo o resto, pois é este o domínio que dinamiza a economia».

Segundo os apologistas de Bolonha, os sucessos dos anglo-saxónicos devem-se a uma determinada organização do ensino, nomeadamente do superior, com uma estrutura
de cursos que conduz à canalização dos melhores alunos para uns poucos lugares altamente qualificados, onde têm as melhores condições para levar a cabo a investigação. Estas instituições são universidades privadas, muitas vezes, tendo o ensino sido baseado, desde há longos anos, no investimento privado directo a vários níveis (parcerias universidade/indústria, fundações, bolsas de estudo e investigação fornecidas por grandes grupos, financiamentos privados preferenciais em determinadas áreas de investigação, etc.)

Em face do processo de Bolonha, qual vai ser o estatuto de Portugal, pais atrasado, com uma enorme falta de abertura ao exterior, sem desenvolvimento próprio, sem linhas próprias de investigação (as que existem são meros apêndices e encomendas feitas por
grandes unidades de investigação doutros países, mas não feitas ou suscitadas de dentro dos vários ramos da indústria ou do Estado)?
Vai acentuar-se a competição no seio de um grupo maioritário de estudantes apenas com uma formação reduzida, incapazes de alcançar um elevado grau de competência por razões económicas (terão de trabalhar para subsistir, por não terem bolsa e por os pais não lhes poderem pagar os estudos): estes terão uma «licenciatura» de apenas três anos, que antes se chamava «bacharelato».

Não poderão ter a pretensão de alcançar postos de trabalho mais ou menos prestigiados. Serão condenados à precariedade para a vida inteira. Os poucos que acederão aos mestrados, pagarão propinas muito elevadas para conseguir um diploma de mestrado que lhes dará (por quanto tempo ainda?) alguma hipótese de obterem um posto de trabalho nesta economia. Uma elite muito restrita irá fazer doutoramento, sendo provavelmente atraída para outras paragens mais estimulantes antes, durante ou após ter feito a tese de doutoramento. Vai perpetuar-se o padrão do brilhante cientista que vai para fora adquirir renome e dá o melhor de si próprio em temas de investigação com interesse, sobretudo, para o país de acolhimento. Continuará a fuga dos «cérebros».

A miragem de Bolonha engana, sobretudo, na ausência de um discurso crítico sobre tal miragem. Pois as pessoas sabem que este país não lhes oferece condições, sobretudo se forem jovens. Custa às vezes as pessoas despertarem para a realidade, mas isso vai acontecer, mais cedo ou mais tarde, pois «Bolonha» é mesmo uma miragem. As pessoas, realmente, serão sujeitas a um ensino muito parco em qualidade (salvo em casos isolados, para «inglês ver»).
Vão os portugueses realmente ter maior dificuldade em competir no mercado de trabalho globalizado? Sem dúvida que sim! A ideia de que os estudantes podem ir
para qualquer país, pois haverá um sistema integrado de reconhecimento automático de graus académicos é realmente uma falácia. Apenas por ingenuidade se pode pensar que um português será bem acolhido e fará brilhantes mestrados ou doutoramentos no estrangeiro, mormente quando isso tira possibilidades de emprego aos nacionais desse país!

Além disso, quantos estudantes universitários portugueses dominam suficientemente o alemão ou o francês, de forma a poderem frequentar o ensino - no mais elevado grau - nesses países? Só alguns raros indivíduos bilingues. Será bem mais fácil a jovens técnicos e investigadores estrangeiros, doutros países da UE, virem a Portugal, para trabalhar em empresas ou departamentos de investigação, pois nestes sítios valoriza-se mais a competência adquirida do que a língua (e todos falam o inglês, a língua universal dos negócios e da ciência).

Não basta denunciar, é necessário mostrar que outro tipo de educação e de organização nos estudos superiores se possa contrapor a este modelo. Sabemos que o saber é poder. É evidente que os poderes económico e estatal querem monopolizar o saber, para melhor controlar os diversos aspectos da sociedade, incluindo a própria gestão do Estado e das empresas… Os modelos concorrentes, o livre pensamento, a livre crítica, sempre foram apanágio dos melhores centros universitários, produtores de novos saberes e ideias, de novas correntes e estéticas. Esta diversidade vai decrescer exponencialmente com o modelo que se quer impor, onde as exigências são ditadas directamente pela grande indústria, pelos grandes grupos económicos.

João Medeiros
Economista

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