Já há uns anos que gosto de ler e ouvir Fátima Bonifácio. Nem sempre concordo com ela, mas são mais as vezes em que lhe dou razão. Eis um texto absolutamente notável que gostaria de ter sido eu a escrever, linha a linha:
Vamos aumentar o descalabro? (público de 23/06/06)
Maria de Fátima Bonifácio
O país ficou chocado com a reportagem exibida pela RTP1 a 30 de Maio sobre uma escola na periferia de Lisboa que mais se assemelhava a um depósito de delinquentes. Não vale a pena relembrar as imagens. Mas vale a pena sublinhar que o secretário de Estado presente no debate que se seguiu não teve uma palavra de apreço pelos professores que enfrentam diariamente aquele martírio. Ao contrário do que este governante tentou inculcar, a "escola" em questão não constitui caso único: constitui apenas um de demasiados casos extremos para que ninguém parece ter solução. E, no entanto, a responsabilidade do ministério é aqui límpida e irrefragável. O Estado tem, como qualquer empregador, a obrigação legal de garantir a segurança física dos que para ele trabalham. Manifestamente, não cumpre tal obrigação. Em 2005, os casos de professores agredidos pelos alunos ultrapassaram largamente o milhar: mais de três por dia. Escolas como aquela que nos foi mostrada são casos de polícia, e só com um polícia ao lado é que os professores se deviam prestar a lá dar aulas.
Infelizmente, o problema da disciplina nas escolas não se cinge aos casos extremos em que ela assume a forma de pura violência. Em todas elas, independentemente das zonas onde estão implantadas, se verifica mais ou menos a existência de uma indisciplina larvar, insidiosa, que subverte por completo o ambiente de ordem e tranquilidade absolutamente indispensável à aprendizagem. Em todas elas os professores são desrespeitados, insultados e vêem todos os dias a sua autoridade escarnecida por crianças e adolescentes
totalmente falhos da mais elementar educação e totalmente desprovidos da mais básica noção de dever. Conheço professores que dão aulas no centro de Lisboa e nem assim se atrevem a estacionar o carro nas imediações da escola, por receio de que lhes furem os pneus ou vandalizem os automóveis. Para as
gerações actuais, a escola é uma "seca" e, sendo assim, nada mais justo e natural, para as cabeças das angélicas criancinhas, do que fazerem dela um recreio permanente. Em suma: a indisciplina que grassa hoje em dia nas escolas torna radicalmente impossível ensinar lá o que quer que seja.
Anos e anos - décadas ! - de pedagogia romântica, assente no pressuposto de que as crianças são vítimas inocentes de uma sociedade repressiva e de que albergam na pureza dos seus espíritos imaculados tesouros de intuição e até de sabedoria ainda não contaminada pelo cinismo do mundo, mergulharam a escola numa anarquia. As pedagogias libertárias de finais da década de 60 - "é proibido proibir" - pegaram de estaca num país dominado por uma cultura cívica e política esquerdista, que prega a irresponsabilidade individual e só aponta o dedo à responsabilidade social. Ao longo dos anos e das décadas, o Ministério da Educação encarregou-se de esvaziar as escolas e os professores das suas competências disciplinares, na crença idiota de que os meninos e as meninas se poderiam corrigir com doçura, através de bons conselhos e benignas acções de recuperação. As punições foram praticamente abolidas. Alunos com 20 e mais participações disciplinares não são expulsos.
Quando se abrem inquéritos, os alunos são ouvidos em pé de igualdade com os professores; ao cabo de vários meses redundam, na melhor das hipóteses, numa suspensão - que não conta para as faltas dadas: os prevaricadores são presenteados com alguns dias ou uma semana de férias. Em suma, a indisciplina na escola tem medrado a coberto da mais completa impunidade.
Muito me espanta que o actual Ministério da Educação, que tem sido justamente louvado pelo esforço sério e sem precedentes para identificar e atalhar os factores do insucesso escolar em Portugal, não tenha até agora
feito uma referência ao problema da indisciplina que mina e inutiliza a escola como lugar de transmissão de conhecimentos. Não basta denunciar a falta de orientação das escolas e dos professores para os resultados dos seus alunos. Nem chega denunciar o espírito burocrático-administrativo que prevalece sobre um real empenhamento num trabalho colectivo tendente a minorar os problemas dos alunos com maiores dificuldades. E o diagnóstico do insucesso escolar também não se esgota na denúncia das pequenas e grandes
corrupções em torno da distribuição de turmas e horários. Tudo isto existe e conta, sem dúvida, e não se vê como possa ser remediado, enquanto as escolas forem governadas por conselhos executivos obrigados a agradar a quem os elegeu. Mas o ministério devia inscrever o problema da indisciplina no topo das suas prioridades, pelo simples motivo de que sem ordem e tranquilidade não há concentração nem trabalho, e sem concentração e trabalho não haverá sucesso escolar.
Ora, nunca se restaurará a disciplina, se os professores não tiverem a sua autoridade protegida pelo ministério e as escolas continuarem de pés e mãos atados para punir os alunos que perturbam a actividade escolar. Não há que fugir disto. Foi assim com espanto e consternação que tomei conhecimento de que o ministério se prepara para chamar os pais a participar na avaliação dos professores, prevista no Estatuto da Carreira Docente actualmente em discussão. Ninguém nega que a balda das avaliações como eram feitas até aqui tem de acabar. Como têm de acabar as pseudoformações que garantiam créditos para a progressão automática nas carreiras. Apenas negam isto os sindicatos, que com o seu reaccionarismo imobilista têm contribuído mais do que ninguém para a degradação da imagem dos professores na sociedade. Mas associar os pais à avaliação dos professores parece-me a medida mais insensata e nefasta que poderia passar pelas cabeças da 5 de Outubro.
Aos paizinhos serão distribuídas "fichas de avaliação", em que se pronunciam sobre "a relação que os professores têm com as crianças". Extraordinária ideia, na verdade! Mas o que sabem eles dessa "relação" a não ser o que os filhinhos lhes contam lá em casa? E quem não sabe que os filhinhos acharão sempre que ela é péssima com os docentes mais exigentes? O secretário de Estado alega que as informações dos pais serão ponderadas com o parecer dos conselhos executivos. Fraco remédio! Basta que um aluno saiba que o docente está sujeito à avaliação do paizinho e da mãezinha para que sinta as costas quentes e redobre de insolência. Se o ministério persistir na adopção de uma medida tão absurda, carregará com a responsabilidade de ser o primeiro contribuinte para a liquidação final da autoridade do professor e, por extensão, para o agravamento da indisciplina e do consequente insucesso escolar. E incorrerá na grave contradição de, por um lado, exigir mais trabalho e empenho aos professores - como pode e deve fazer -, retirando-lhes, por outro lado, um dos meios decisivos para cumprirem a sua missão com eficácia.
A ideia de pôr os pais a avaliar os professores daria vontade de rir, se não fosse grave. Para além do que fica dito, sobram outras considerações. Grande parte dos pais que têm actualmente os filhos na escola são analfabetos ou pouco menos do que isso. Não possuem um vestígio de idoneidade intelectual para se pronunciarem sobre a qualidade dos docentes; para não mencionar os muitos que não possuem idoneidade moral. Depois, outra grande, grande parte pura e simplesmente despeja os filhos na escola e não quer saber do que lá se passa. Em Portugal, a maioria dos "encarregados de educação", por incompetência ou desinteresse, ou ambas as coisas combinadas, vivem inteiramente divorciados da vida escolar. Só vejo vantagens em manter pais destes à distância. E não me venham com o exemplo da América ou da
Finlândia, onde os pais e as suas associações se envolvem intensamente na gestão escolar: convém não esquecer que, infelizmente, estamos em Portugal.
Historiadora
Nota: o texto foi encontrado n'O Cartel.
Vamos aumentar o descalabro? (público de 23/06/06)
Maria de Fátima Bonifácio
O país ficou chocado com a reportagem exibida pela RTP1 a 30 de Maio sobre uma escola na periferia de Lisboa que mais se assemelhava a um depósito de delinquentes. Não vale a pena relembrar as imagens. Mas vale a pena sublinhar que o secretário de Estado presente no debate que se seguiu não teve uma palavra de apreço pelos professores que enfrentam diariamente aquele martírio. Ao contrário do que este governante tentou inculcar, a "escola" em questão não constitui caso único: constitui apenas um de demasiados casos extremos para que ninguém parece ter solução. E, no entanto, a responsabilidade do ministério é aqui límpida e irrefragável. O Estado tem, como qualquer empregador, a obrigação legal de garantir a segurança física dos que para ele trabalham. Manifestamente, não cumpre tal obrigação. Em 2005, os casos de professores agredidos pelos alunos ultrapassaram largamente o milhar: mais de três por dia. Escolas como aquela que nos foi mostrada são casos de polícia, e só com um polícia ao lado é que os professores se deviam prestar a lá dar aulas.
Infelizmente, o problema da disciplina nas escolas não se cinge aos casos extremos em que ela assume a forma de pura violência. Em todas elas, independentemente das zonas onde estão implantadas, se verifica mais ou menos a existência de uma indisciplina larvar, insidiosa, que subverte por completo o ambiente de ordem e tranquilidade absolutamente indispensável à aprendizagem. Em todas elas os professores são desrespeitados, insultados e vêem todos os dias a sua autoridade escarnecida por crianças e adolescentes
totalmente falhos da mais elementar educação e totalmente desprovidos da mais básica noção de dever. Conheço professores que dão aulas no centro de Lisboa e nem assim se atrevem a estacionar o carro nas imediações da escola, por receio de que lhes furem os pneus ou vandalizem os automóveis. Para as
gerações actuais, a escola é uma "seca" e, sendo assim, nada mais justo e natural, para as cabeças das angélicas criancinhas, do que fazerem dela um recreio permanente. Em suma: a indisciplina que grassa hoje em dia nas escolas torna radicalmente impossível ensinar lá o que quer que seja.
Anos e anos - décadas ! - de pedagogia romântica, assente no pressuposto de que as crianças são vítimas inocentes de uma sociedade repressiva e de que albergam na pureza dos seus espíritos imaculados tesouros de intuição e até de sabedoria ainda não contaminada pelo cinismo do mundo, mergulharam a escola numa anarquia. As pedagogias libertárias de finais da década de 60 - "é proibido proibir" - pegaram de estaca num país dominado por uma cultura cívica e política esquerdista, que prega a irresponsabilidade individual e só aponta o dedo à responsabilidade social. Ao longo dos anos e das décadas, o Ministério da Educação encarregou-se de esvaziar as escolas e os professores das suas competências disciplinares, na crença idiota de que os meninos e as meninas se poderiam corrigir com doçura, através de bons conselhos e benignas acções de recuperação. As punições foram praticamente abolidas. Alunos com 20 e mais participações disciplinares não são expulsos.
Quando se abrem inquéritos, os alunos são ouvidos em pé de igualdade com os professores; ao cabo de vários meses redundam, na melhor das hipóteses, numa suspensão - que não conta para as faltas dadas: os prevaricadores são presenteados com alguns dias ou uma semana de férias. Em suma, a indisciplina na escola tem medrado a coberto da mais completa impunidade.
Muito me espanta que o actual Ministério da Educação, que tem sido justamente louvado pelo esforço sério e sem precedentes para identificar e atalhar os factores do insucesso escolar em Portugal, não tenha até agora
feito uma referência ao problema da indisciplina que mina e inutiliza a escola como lugar de transmissão de conhecimentos. Não basta denunciar a falta de orientação das escolas e dos professores para os resultados dos seus alunos. Nem chega denunciar o espírito burocrático-administrativo que prevalece sobre um real empenhamento num trabalho colectivo tendente a minorar os problemas dos alunos com maiores dificuldades. E o diagnóstico do insucesso escolar também não se esgota na denúncia das pequenas e grandes
corrupções em torno da distribuição de turmas e horários. Tudo isto existe e conta, sem dúvida, e não se vê como possa ser remediado, enquanto as escolas forem governadas por conselhos executivos obrigados a agradar a quem os elegeu. Mas o ministério devia inscrever o problema da indisciplina no topo das suas prioridades, pelo simples motivo de que sem ordem e tranquilidade não há concentração nem trabalho, e sem concentração e trabalho não haverá sucesso escolar.
Ora, nunca se restaurará a disciplina, se os professores não tiverem a sua autoridade protegida pelo ministério e as escolas continuarem de pés e mãos atados para punir os alunos que perturbam a actividade escolar. Não há que fugir disto. Foi assim com espanto e consternação que tomei conhecimento de que o ministério se prepara para chamar os pais a participar na avaliação dos professores, prevista no Estatuto da Carreira Docente actualmente em discussão. Ninguém nega que a balda das avaliações como eram feitas até aqui tem de acabar. Como têm de acabar as pseudoformações que garantiam créditos para a progressão automática nas carreiras. Apenas negam isto os sindicatos, que com o seu reaccionarismo imobilista têm contribuído mais do que ninguém para a degradação da imagem dos professores na sociedade. Mas associar os pais à avaliação dos professores parece-me a medida mais insensata e nefasta que poderia passar pelas cabeças da 5 de Outubro.
Aos paizinhos serão distribuídas "fichas de avaliação", em que se pronunciam sobre "a relação que os professores têm com as crianças". Extraordinária ideia, na verdade! Mas o que sabem eles dessa "relação" a não ser o que os filhinhos lhes contam lá em casa? E quem não sabe que os filhinhos acharão sempre que ela é péssima com os docentes mais exigentes? O secretário de Estado alega que as informações dos pais serão ponderadas com o parecer dos conselhos executivos. Fraco remédio! Basta que um aluno saiba que o docente está sujeito à avaliação do paizinho e da mãezinha para que sinta as costas quentes e redobre de insolência. Se o ministério persistir na adopção de uma medida tão absurda, carregará com a responsabilidade de ser o primeiro contribuinte para a liquidação final da autoridade do professor e, por extensão, para o agravamento da indisciplina e do consequente insucesso escolar. E incorrerá na grave contradição de, por um lado, exigir mais trabalho e empenho aos professores - como pode e deve fazer -, retirando-lhes, por outro lado, um dos meios decisivos para cumprirem a sua missão com eficácia.
A ideia de pôr os pais a avaliar os professores daria vontade de rir, se não fosse grave. Para além do que fica dito, sobram outras considerações. Grande parte dos pais que têm actualmente os filhos na escola são analfabetos ou pouco menos do que isso. Não possuem um vestígio de idoneidade intelectual para se pronunciarem sobre a qualidade dos docentes; para não mencionar os muitos que não possuem idoneidade moral. Depois, outra grande, grande parte pura e simplesmente despeja os filhos na escola e não quer saber do que lá se passa. Em Portugal, a maioria dos "encarregados de educação", por incompetência ou desinteresse, ou ambas as coisas combinadas, vivem inteiramente divorciados da vida escolar. Só vejo vantagens em manter pais destes à distância. E não me venham com o exemplo da América ou da
Finlândia, onde os pais e as suas associações se envolvem intensamente na gestão escolar: convém não esquecer que, infelizmente, estamos em Portugal.
Historiadora
Nota: o texto foi encontrado n'O Cartel.
3 comentários:
Sim, está aí tudo dito, e eu só não percebo porque é que fingem não ver. Rematava bem Santana Castilho o Editorial do 1º número da revista Pontosnosii ao dizer (não lembro as palavras exactas) que o ME tinha que perceber que o seu grande problema era o da indisciplina nas escolas. O da violência, creio que de facto não é generalizado, mas o da indisciplina simples, na atenção, no trabalho na aula, no não se calarem senão à custa de constante atitude severa do professor, etc. está a desgastar os professores e a tirar tempo precioso para que os alunos que querem concentrar-se e aprender o consigam, e isto só os cegos não vêem que é mesmo um problema generalizado (e que ainda se generaliza mais por contágio entre os miúdos, passa a ser o natural, normal, as excepções até merecem ir para o chamado quadro de comportamentos meritórios, à maneira do quadro de honra do antigamente, como se o seu comportamento não fosse simplesmente o que devia ser ensinado a todas as crianças desde pequeninas)
Nem mais. Chega-se ao cúmulo de considerar "Bom" um aluno que, simplesmente, respeita os colegas e o professor na sala de aula; ou valoriza-se o mesmo aluno só prque faz trabalhos de casa e é pontual. Isso mais não é que a sua obrigação!
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